
Beren olhava calmamente a corneta de ouro que carregava consigo, examinando sua beleza. Embora os elfos de Ankara não fossem apaixonados por peças feitas de metais nobres como os Anões, era inegável que a beleza do artefato possuía algo de hipnótico. Ainda mais se lembrar-mos que aquele instrumento era capaz de convocar uma besta da magnitude de Kellendros, o Dragão Azul. Os heróis resolveram entrar no quinto Espelho da Memória. Mas Beren, em mais um de seus delírios egoístas resolveu entrar no sexto espelho. Naquela hora, o vulto de Lord Soth movimentou a mão calejada, em um espasmo mudo.
As imagens foram clareando e o grupo se viu numa ampla escadaria de pedra em espiral, no interior de uma torre. Ao fim da subida, chegava-se a um salão alto, de onde escutava-se uma discussão. Todos trajavam túnicas sacerdotais, embora empunhassem também suas armas tradicionais. Os aventureiros aproximaram-se dos ruídos e puderam ver o que se sucedia: o cavaleiro de espada em punho apontando para um corpo atirado no chão era, sem dúvida, Lord Soth. O sangue do cadáver borrava as finas tapeçarias do local. Era uma mulher vestindo uma armadura azulada completamente estilhaçada. O que restou do estandarte negro e dourado acusava sua alta posição militar. Era Kitiara Uth Matar. Diante do corpo da Dama Azul, um elfo magro vestindo uma túnica verde-escura, em postura defensiva. Ao seu lado, um conhecido do grupo: Thannis meio-elfo. O guerreiro também empunhava sua arma, mas havia nele um ar de hesitação bem diferente da bravura cega que o grupo conhecera nas ruas de Palanthas. Atrás dos dois havia uma luz clara como uma manhã, em formato oval. Lothar sussurou que aquilo era, provavelmente, um portal mágico! Ouvindo a discussão, o grupo percebeu que Lord Soth estava ali para reclamar o corpo de Kitiara. Thannis e Dalamar, um aprendiz de feiticeiro, defendiam o cadáver contra a investida do cavaleiro negro. Mas era evidente que estes temiam a sua ira.
Lord Soth levantou a voz contra seus oponentes e apontou-lhes a larga espada de forma ameaçadora. Quando o blasfêmo cavaleiro preparava-se para dar um passo adiante, os heróis interviram na discussão. Surgindo da escadaria em espiral, o grupo se colocou entre Thannis meio-elfo, Dalamar e Lord Soth. O lorde negro surpreendeu-se por um breve instante, mas não interrompeu sua carga sobre o bando de intrusos que impediam-o de levar o corpo de sua amada Kitiara, a Dama Azul. Thannis meio-elfo também postou-se diante de Soth, mas não aparentava reconhecer os heróis de ocasiões anteriores. O lorde negro então falou:
A voz daquele ser decadente era grave como uma tuba. Entristecida, mas cheia de fúria e morte como o cheiro que atrai os abutres ao campo de batalha. Sua armadura chamuscada pelo fogo dos deuses estampava ainda aquela insígnia infame: a Rosa Negra. Thannis meio-elfo deu mais um passo adiante, postando-se ao lado do corpo sem vida de sua antiga companheira.
- Você que é um rato traiçoeiro, Lord Loren Soth! Você seguiu Kitiara pela floresta, até qui, esperando o momento exato para traí-la. Com que direitos você reclama o corpo dela? Sua desonra aumenta a cada dia, cavaleiro negro.
Soth lançou um olhar infernal sobre aquele meio-elfo insolente, embora soubesse que aquela era a mais pura verdade. Mas o que era a verdade dentro de suas próprias fantasias e recordações violadas?
- Traidor? Foi seu amigo Dalamar que a matou a instantes atrás, meu caro inimigo! Você e seus companheiros devem me entregar o corpo dela ou morrer pela lâmina de minha espada! Não seja ridículo, Thannis meio-elfo, com sua fidelidade tardia. Para Kitiara você não passou de uma aventura infantil...

Enquanto os guerreiros se confrontavam com palavras e intimidações, o portal que brilhava atrás dos aventureiros emanava um calor insuportável. Se alguém mirasse seu interior, perceberia uma paisagem desolada. Uma imensidão avermelhada de areia e pedras desgastada por temperaturas vulcânicas sob um céu carmesin se estendia até os confins da visão. Também era possível enxergar uma trilha de pegadas que seguia ao horizonte. Alguém havia entrado naquela paisagem infernal, traçando uma jornada aos limites do desconhecido...
Beren sentia seu corpo flutuar entre o ar quente de um templo em ruínas. Ele se sentia como um espírito atormentado e sem lar. Junto a ele estavam outras almas condenadas a esmoecer naquele cenário sem tempo. Foi quando ele escutou passos pesados e o barulho de aço. Sua visão estava um tanto embaralhada, mas foi possível compreender que das escadas amontoadas daquele lugar infernal vinha chegando alguém. O ambiente do sexto Espelho da Memória era o temível Abismo, o limbo infernal para onde os adoradores de Takhisis, o Dragão de Sete Cabeças, a Senhora da Escuridão, vão ao final de seus dias na terra. Esse era o ambiente representado nas memórias de Lord Soth.
O cavaleiro apareceu na entrada do templo, vestindo sua tradicional armadura negra. dessa vez ele apresentava sua aparência tradicional: seus olhos eram apenas dois pontos vermelhos incandecentes. Seu corpo exalava um cheiro de queimado e morte. Soth esticou a mão para o alto, segurando um medalhão ornamentado com uma enorme safira preta. Sussurando como um pássaro, ele repetiu:
- Venha até mim Kitiara. Sua alma me pertence! Sente-se ao meu lado pela eternidade e governemos juntos o mundos dos vivos e dos mortos...
Subitamente, um dos vultos imateriais que se contorcia naquele calor infernal começou a flutuar na direção da jóia. O lorde negro abriu um sorriso de satisfação profunda: - Finalmente!
Tudo aconteceu muito rápido, embora parecesse uma eternidade naquela paisagem inóspita. Beren acordou novamente no salão gelado de Nedraagard. Só lhe restava esperar pelos companheiros.
Enquanto isso, no interior do quinto espelho, a discussão tornava-se combate iminente. Lord Soth foi tomado por uma fúria desenfreada e ergueu a larga espada contra seus opositores. O grupo buscou cercar o cavaleiro, desferindo golpes por todos os lados. no entanto, cada um que era atingido pela espada de Lord Soth sentia um sopro gélido aterrorizante. Dimitre e Thynnus haviam sido golpeados. Thannis realizava uma espécie de duelo particular, em meio a saraivadas de espadas. Lothar tentava não encarar o morto-vivo diretamente, mas também acabou sendo ferido. Lord Soth era um espadachim muito experiente e quase imbatível. Todos estavam atordoados quando Soth derrubou Thannis meio-elfo e preparava-se para o golpe fatal. Foi quando ouviu-se um grito bestial vindo do outro lado da sala. Era Dalamar que segurava o cadáver de Kitiara próximo ao portal. Lord Soth se viu paralisado diante da ameaça do elfo em jogar o corpo da Dama Azul ali, naquela entrada para o Abismo. Seria o fim. Mas o lorde negro não largou a espada. Respirou profundamente e resmungou:
- Você não ousaria fazer isso, Dalamar! Você não passa de um covarde e sabe disso...
Nessa hora o elfo encheu-se de ódio e num ato desesperado, atirou o corpo de Kitiara, a Senhora dos Dragões, no portal a sua frente. O corpo pareceu virar cinzas instantaneamente e um cheiro de carne queimada prencheu o salão. Lord Soth deixou a espada escorrer pelos dedos até cair no chão. Thannis, que sangrava muito, abriu um sorriso vitorioso. A cena pouco a pouco se desfazia. Os aventureiros estavam de novo abandonados diante do trono decadente de Nedraagard. Apenas um espelho os separava do despertar do Cavaleiro da Rosa Negra

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